Capítulo 3 - Urbano

À saída das aulas, fizeram-se amigos à porta da Escola Luciana e Álvaro Urbano, estudante de Arquitectura.
Após a breve pausa que se seguira às primeiras trocas de impressões sobre cursos que poderiam ser parentes próximos, a Arte em múltiplas formas, ele recitou-lhe um fragmento de poema do seu homónimo Álvaro, de Campos heterónimo: "A certos momentos nossos de sentimento-raiz / Quando no mundo-exterior como que se abre uma porta / E, sem que nada se altere, / Tudo se revela diverso."
Seguidamente, novamente após breve pausa em que caminharam calados e distraídos pelas ruas de Lisboa, dissera-lhe, comentando as descobertas, que todas as nossas Odes Marítimas partiram da libertação do entusiasmo, e este fazendo fulcro na força de acreditar na Beleza.
Andavam nessa altura um tanto enredados na definição de Estilo e Escola de Pintura. Ou melhor: nas respectivas caracterizações.
Álvaro desdobrou para a amiga a tessitura que edificara no seu espírito, tentativa de ordenação dessa complexa Torre de Babel, tendo como critério definidor a característica a seu ver dominante em cada forma de expressão plástica.
Em linhas de força, dispunha as escolas e os estilos, traçando, como no cavalete, a perspectiva, ou talvez a sua esquemática ilusão:
-"A composição, em Cézanne, definia o Formalismo; o ar e luz em Monet, o Impressionismo; a sensação, em Van Gogh, marcava o Expressionismo. Em Kirchner, dominava a cor; em Matisse e outros Fauvistas, a linha. Com o Cubismo, em Picasso ou Braque, se entrava em decomposição analítica, como que fechando o ciclo da espiral que precede o actual.
"Nesse desenvolvimento, o Futurismo privilegia o movimento, como em Boccioni; o Neoplasticismo dá o primado à geometria, como é notório em Mondrian. Já o Construtivismo de Malevitch exalta a pureza, enquanto o Dadaísmo expressa o protesto – veja-se Duchamp, Arp, Kandinsky.
"Mas a inspiração do subconsciente volta a ter foros de cidadania com Dali, Klee e Chagall, erguendo o movimento Surrealista.
"Assim, como que em reacção, surgiu a Arte Concreta, com predomínio das formas, podendo citar-se Van Doesburg. Um expoente de outra corrente paralela – a Arte Abstracta, contemporânea da anterior, como soe nas coisas correlativas, foi Herbin, com as suas normas geométricas. Entretanto, com Estève a arte abstracta torna-se decorativa, pois as expressões são não-figurativas, de cor e forma.
"Mais ou menos sempre ligadas aos movimentos de ideias, as várias correntes têm-se sucedido, quer com hiatos, quer sobrepondo-se, veja-se o exemplo do Realismo Socialista, da Pop-Art, da Op-Art de Vasarely, do Neo-expressionismo, a "action painting", os "happenings"..."
Nessa altura Luciana interrompera-o subitamente:
-"Pouco me importam Academias, sejam Helenísticas ou Góticas, Românicas, Barrôcas ou Bizantinas. Arte Grega ou Arte Nova, Classicismo ou Maneirismo, Luminismo, Intimismo, Naturalismo, Pontilhismo, Romantismo, Informalismo, Simbolismo, Ingenuismo ou Realismo, todos os "ismos" que quiseres! Junta-lhes também a todos ora o prefixo "neo" ora o prefixo "post" e terás sempre uma reserva de rótulos, permitindo óptimas classificações prenhes de designações "lagartixiformes"!
"Mais do que a definição de estilos, mais do que saber se há gestualismo ou automatismo, se há vorticismo ou sintetismo, se é não-figurativo ou se existe neo-figurativismo, o que verdadeiramente me interessa, destrinçando-o entre todas as formas, ecléticas ou "naives", em que insistentemente vacilamos - "Minimal Art", Arte Cinética, Arte Conceptual, Renascimento ou Rococó - é dominar todas as técnicas, descobrir os valores "tácteis", seja por "cloisonnisme", seja por colagem, aguarelas ou serigrafias, em mosaico, em claro-escuro ou perspectiva-e-ponto-de-fuga, tudo o que possa tornar possível a prática da vivência criativa!"
Urbano ouvira espantado este jorro impetuoso, tentando compreender a aparente e súbita fúria da amiga. Pediu-lhe que tentasse exprimir os seus desejos, mais do que os objectivos, para que se clarificassem as razões, pela táctica do flanco.
Luciana disse-lhe, então calma, sem espasticidade:
-"Gostava de ouvir fluir a minha voz como um solo de saxofone, em líquidas notas de veludo banhando a textura das palavras. Como quando soltava o pensamento à procura do sentido na fala imediata aos sentidos. Como a liberdade de respirar, andar até doerem os passos, na natural sequência de não ter de deixar marcos no caminho."
Urbano quedara-se, pensativo, meditando como aos artistas lhes falta o sentido prático da vida, impondo aos seus voos as fronteiras de que se lamentam, sempre aquém daquele "golpe de asa"...

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